2.2.16

Identidade Cultural e Alteridade: Problematização Necessária 2




Os anormais contemporâneos são os sem-emprego, os sem-teto, os sem -terra, os consumidores falhos de Bauman, os “portadores de necessidades especiais”, os “improdutivos” e os pobres. Os novos “impuros”, a “sujeira social” pós-moderna, ou seja, a diferença, assim como a identidade cultural, saem do território restrito e limitado dos Estados-nação, para serem ditadas, definidas, impostas, (re)produzidas e (re)significadas enquanto produtos da interconexão cultural global, da globalização econômica, dos novos valores decorrentes desse fim das fronteiras nacionais e da substituição da supremacia do estado nacional pela do mercado capitalista, e até mesmo, pelo temor que esse processo de universalização da cultura, em alguns casos provoca. 

Em nível local, podemos citar como exemplo deste último fator de (re)significação/(re)produção da alteridade, o fortalecimento do comunitarismo, ou neo comunitarismo como é também chamado. A falência dos Estados-nação, e com isso, do sentimento de segurança, estabilidade, limpeza e ordem que deles derivavam, fazem com que a comunidade se torne atualmente um atrativo para aqueles grupos minoritários que temem serem absorvidos pelo processo de homogenização cultural decorrente do fenômeno globalização e terem a sua cultura/identidade exposta à infiltração cultural. 

O que precisa ser ressaltado é que esses movimentos comunitaristas, embora se apresentem como um processo inocente de fortalecimento de comunidades “naturais” – geralmente organizadas em torno de uma etnia comum – se constroem a partir de discursos excludentes e preconceituosos, que reivindicam e afirmam sua identidade através de relações identidade/diferença baseadas em concepções essencialistas e de pureza, que via normalização dos elementos – símbolos, signos e representações - que compõem a identidade da comunidade desenvolvem discursos e práticas de negação e não aceitação dos “seus diferentes”, possibilitando a exclusão e a marginalização daqueles pela comunidade estigmatizados. 

Todavia, como o Estado-nação revelou-se muito mais ocupado/preocupado com uma sociedade regida pelos frios interesses do mercado do que pela “unidade de sentimentos”(Bauman, 1998), é agora nas comunidades onde se deposita a confiança e a esperança de execução daquelas promessas que o Estado-nação não conseguiu cumprir. 

A comunidade por sua vez, representa atualmente o sonho de um porto seguro. Tal como é aspirada pelos comunitaristas, ela atrai pelo aconchego caseiro, pela promessa de apoio e compreensão mútuos, pela harmonia de interesses, pela “identidade comum” e principalmente pela esperança de que na comunidade se encontre a segurança, a certeza e se restabeleça a confiança que a sociedade contemporânea não dispõe devido ao grande desequilíbrio existente entre a liberdade e as garantias individuais. 

No entanto, embora os significados e as sensações que a ideia e a própria palavra “comunidade” remetem enquanto algo bom e positivo, há sempre um preço a pagar pelo privilégio de “viver em comunidade”. Para Bauman (2003), o preço é pequeno e até invisível enquanto a comunidade for um sonho, e ele é pago em forma de liberdade, autonomia, direito à auto-afirmação e à identidade. 

O que precisa ser ressaltado, é que por trás dos significados e sensações positivos e acolhedores que o termo e a ideia de comunidade transmitem, o comunitarismo abrange processos de exclusão dos “outros”, daqueles que não compõe ou não estão “aptos” a compor a comunidade. Ele promove a etnização da cultura produzindo e  representando a alteridade de maneira negativa, como ameaça. 

O expurgo dos que não fazem parte torna-se assunto da comunidade. A lógica do comunitarismo, portanto, é a mesma lógica de constituição dos Estados-nação na modernidade, dá-se através da homogeneização cultural, da marcação da identidade e “demonização” da diferença. 

Como destaca Silva (p.206), “tendemos a pensar o comunitarismo como aliado na luta contra os efeitos ‘perversos’ da globalização sem nos darmos conta de que o inimigo está na trincheira”. É preciso dizer ainda que o caráter de “naturalidade” utilizado pelo discurso comunitário na defesa da comunidade não se sustenta mais na era da informática, com o trânsito rápido e incontrolável da informação e da cultura. 

Na pós-modernidade, as comunidades não têm como manter “puras” as suas tradições, elas não podem mais manter instransponíveis as fronteiras que separam o “dentro” e o “fora”. Para Bauman (2003) a comunidade “natural” está sendo substituída pela “comunidade do entendimento comum”, e esta, por sua vez, mesmo se alcançada, permanecerá frágil e vulnerável, necessitando de constante vigilância, reforço e defesa, visto que o “entendimento comum” só pode ser alcançado, como afirma o autor “ao fim de longa e tortuosa argumentação e persuasão, e em competição com um número indefinido de outras potencialidades” (p.19).

Nessa comunidade, toda homogeneidade, toda unidade e todo acordo precisam ser construídos, produzidos, e estarão sempre sujeitos a contestação, discussão e reflexão. A “comunidade realmente existente” exigirá olhos atentos vinte e quatro horas por dia “para manter os estranhos fora dos muros e para caçar os vira-casacas em seu próprio meio”. (Bauman, 2003, p.22) 

Sabemos que nas condições atuais, é impossível fechar-se ao “outro”, mantê-lo distante, assim como sua identidade, sua cultura e a carga de atributos negativos que lhe foram conferidos. Ao mesmo tempo esses tantos “outros” pós-modernos provocam medo, por não serem localizados, previsíveis e por não estarem confinados em instituições de controle – as instituições modernas que antes eram as responsáveis pela sua (re)habilitação, regulação e controle estão falidas, nem (re)habilitam, nem regulam, nem controlam. 

Contudo, embora se apresente como solução para esses temores, para os anseios dos homens e mulheres que procuram a segurança, a estabilidade, a ordem e a previsibilidade nas relações sociais, a comunidade dos discursos neo comunitaristas não pode oferecer mais do que já se tem: ao levantar seus muros, priva a liberdade; ao deixar os “outros” soltos do lado de “fora”, instaura apreensão e insegurança. A alteridade vista – e nisso nada difere da modernidade – como um problema ao mesmo tempo incômodo e necessário, dentro da lógica comunitarista, deve ser isolada, controlada, demonizada. 

Preocupa é como, na prática, essa lógica se efetiva. Nesse período de tantas incertezas, de falência e crise das instituições estáveis da modernidade; nesse período em que o inimigo é disperso, sem um centro, em que o excesso de liberdade promove ainda maior falta de segurança; num período em que temos medo, em que almejamos ordem, estabilidade e previsibilidade, habitar uma comunidade seria perfeito, não fosse ela uma réplica microscópica do Estado-nação, com toda sua perversidade e limitações.  


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