14.2.16

Relação entre Cultura e História




Por Ludmila Franca
(Instituto Norberto Bobbio)

A relação entre cultura e história é pensada pela primeira vez, de forma bastante crítica, por Hegel e, posteriormente, por Marx. Essa relação implica o reconhecimento da historicidade da existência humana, cujos valores decorrem de apreensões de caráter cultural que não decorrem da natureza das coisas, mas sim de valores atribuídos no intuito de compreender o mundo. 

Desse modo, a realidade humana está referida aos conceitos construídos culturalmente e esses conceitos se transformam à medida em que a história segue seu curso, pois, a cada nova mudança, a cada nova situação, o homem se vê obrigado a construir novos valores, a reinterpretar a realidade e a dar novos sentidos àquilo que o cerca, bem como a si mesmo.


A diferença entre natureza e cultura


Diferentemente do que pensamos, muitas situações que cremos ser naturais, em verdade, são fruto de condicionamentos culturais que se sedimentam através de gerações, criando na tradição o fio condutor de valores mundanos entendidos como verdades absolutas. Percebemos isso facilmente quando pensamos em situações como a suposta inferioridade da mulher, que foi construída durante séculos de dominação cultural da Igreja Católica, bem como a inferioridade de índios e negros, entendidos como primitivos e sem alma, inferiores em relação ao homem branco. Outros exemplos poderiam ser dados no sentido de retratar como determinadas situações, vistas como naturais, a bem da verdade não passam de construções humanas, que podem ser cambiadas a medida em que novas interpretações e situações são colocadas diante dos sujeitos.

Assim, a natureza refere-se ao campo onde as situações decorrem sem que haja uma interferência humana, por meio de leis próprias que regem ciclos e relações de causa e efeito (causalidade). Durante anos, o argumento de que existiam situações humanas decorrentes de impulsos naturais indeléveis permitiu o surgimento de uma concepção de humanidade dividida em raças (inferiores e superiores), estabelecendo-se uma escala evolutiva, na qual o europeu estava no topo, sendo que as demais etnias (vitimadas pelos arroubos colonialistas e imperialistas que culminaram em genocídio e escravidão), eram tidas como naturalmente inferiores, de comportamento mais próximo dos animais, irracionais.

Hoje, entendemos de forma diferente, apesar de o preconceito dessas teorias evolucionistas sobreviver de forma velada entre os indivíduos do corpo social. Foi necessária, assim, a compreensão de que existe um gênero humano referido a várias etnias, ou seja, homens que, apesar de iguais em sua condição humana, se diferenciam por fatores étnicos: idioma, religião, organização social, fenótipo, valores. Essas diferenças, anteriormente referidas a uma teoria evolucionista de viés eurocentrista, hoje são entendidas, pela antropologia, como elementos culturais, que não implicam maior ou menor grau de evolução, mas tão somente a diferença de percepção de mundo e de modo de vida.

A cultura, diferentemente da natureza, não obedece a uma rotina cíclica, de repetição: nascer, crescer, reproduzir, morrer. Ao contrário, a cultura é uma forma de estrutura de tempo linear dentro de um mundo (natural) regido por um tempo circular (cíclico): através dela, a história humana se desenrola, no fluxo de novas percepções e valores construídos pelo afã humano de estabelecer um lugar para si no mundo. 

Com isso, os valores humanos se mostram historicamente condicionados, sendo mesmo inadmissível o estabelecimento de verdades absolutas e imutáveis, pois se o homem, a quem essas verdades estão referidas, é um ser histórico, que muda em função das novas experiências que a seqüência da vida através das gerações coloca diante de si, as verdades devem acompanhar essas mudanças, a fim de que possam realmente se prestar para a solução dos assuntos humanos.

Um exemplo dessa situação é a questão dos direitos humanos. Sendo valores expressos normativamente, os direitos humanos possuem diversas gerações em função do surgimento de novas necessidades no curso da vida humana. 

Primeiro, os direitos ditos “vermelhos” ou de primeira geração, estabelecidos sob a influência da burguesia revolucionária na França (1789) e consagrados como valores “universais”: vida, liberdade, propriedade, igualdade. Em um outro momento, numa Europa devastada pelas mazelas de uma Revolução Industrial que culminou na super-exploração da classe operária, surgem os direitos humanos “azuis”, ou de segunda geração, que visam salvaguardar ao indivíduo condições mínimas de vida social: habitação, trabalho, saúde, educação. E assim sucessivamente, gerações de direitos humanos se estabelecem à proporção que a história segue seu curso e coloca novas situações a serem enfrentadas pelo homem.

Disso decorre a historicidade da existência humana, que é cultural apesar da referência do homem enquanto um animal também e, nessa medida, parte da natureza. 

Todavia, diferentemente dos demais animais, o homem se consagra como um ser dotado da capacidade de “criar” mundo através dos valores que atribui a si e àquilo que o cerca (cultura), sendo certo que, uma vez subtraídas as suas referências culturais, o homem se apresenta como único animal que não tem o comportamento pré-determinado por um “instinto humano”, haja vista o caso de Amala e Kamala, as meninas-lobo, e de Victor, o “menino selvagem de Aveyron”. Esses casos mostram a nós que o homem não nasce pronto, como os demais animais (um gato criado em meio a cachorros ainda assim se comportará como um gato). 

Ao contrário, o homem, ou a suposta “natureza humana” é construída através do contato com outros humanos, que nos ensinam os valores e os modos de vida sociais, a cultura, que nos humaniza.

Destarte, cientes de que não existem culturas melhores e piores, mas sim culturas diferentes, e de que são esses fatores culturais que moldam nossa existência ao longo da história, podemos perceber porque é tão complexa a solução de problemas referidos a diferenças étnicas, como o conflito Israel x Palestina, ou a impossibilidade de diálogo que muitas vezes se estabelece entre ocidentais e orientais. 

Esses conflitos, gerados pela reconhecimento da diferença étnica sem aceitação da igualdade humana, culminam em experiências trágicas, como a Shoá (também conhecida como Holocausto), o genocídio dos ameríndios em nosso continente, ocorrido à época da colonização, no século XV, os genocídios ocorridos na África e a escravidão dos negros, o genocídio dos armênios pelos turcos (Ararat, 1915) e outros exemplos vergonhosos que mancham a história humana. 

Essa “desumanização” proposta por aqueles que não aceitam as diferenças étnicas e submetem “o outro” aos campos de concentração, às senzalas, aos troncos, aos guetos é um dos maiores desafios impostos à humanidade, que deve supera-lo, a fim de afirmar a condição plural do mundo e do gênero humano. 

A Terra é pluralidade, que implica o reconhecimento da igualdade humana a despeito da aceitação da diferença, como única forma de realmente afirmamos aquilo que se alcunhou “dignidade humana”.






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