10.3.16

Cultura Internacional






por James Petra 

Uma das grandes decepções do nosso tempo é a noção de "internacionalização" de ideias, mercados e movimentos. Tornou-se moda evocar termos como "globalização" ou "internacionalização" para justificar ataques a qualquer ou todas as formas de solidariedade, comunidade, e/ou valores sociais. Sob o disfarce de "internacionalismo", a Europa e os EUA tornaram-se exportadores dominantes de formas culturais que na maior parte conduzem à despolitização e trivialização da existência de todos os dias. As imagens de mobilidade individual, a pessoa "self-made", a ênfase sobre a "existência egoísta" (produzida em massa e distribuída pela indústria americana dos mass media) tornaram-se agora instrumentos importantes na dominação do Terceiro Mundo. 

O neoliberalismo continua prospera não porque ele resolva problemas, mas porque ele serve aos interesses dos ricos e poderosos e vibra entre alguns sectores dos empobrecidos empregados por conta própria que pululam nas ruas do Terceiro Mundo. 


A norte-americanização das culturas do Terceiro Mundo tem lugar com a benção e o apoio das classes dominantes nacionais porque ela contribui para estabilizar o seu domínio. As novas normas culturais — o privado sobre o público, o individual sobre o social, o sensacional e violento sobre as lutas quotidianas e as realidades sociais — tudo contribui para inculcar precisamente os valores egocêntricos que minam a acção colectiva.  A cultura de imagens, de experiências transitórias, de conquista sexual trabalha contra a reflexão, compromisso e sentimentos partilhados de afeição e solidariedade. 

A norte-americanização da cultura significa focar a atenção popular sobre celebridades, personalidades e mexericos privados — não sobre a profundidade social, substância económica e condição humana. O imperialismo cultural distrai da relação de poder e desgasta as formas colectivas de acção social. 

A cultura que glorifica os reflexos 'provisórios' do capitalismo americano sem raízes — seu poder para contratar e despedir, para movimentar o capital sem respeito para com comunidades. O mito da "libertação da mobilidade" reflecte a incapacidade do povo para estabelecer e consolidar raízes comunitárias em face das cambiantes exigências do capital. 

A cultura norte-americana glorifica o transitório, as relações impessoais como "liberdade" quando de facto estas condições reflectem a anomia e a subordinação burocrática de uma massa de indivíduos ao poder do capital corporativo. A norte-americanização envolve um assalto maciço às tradições de solidariedade em nome da modernidade, ataques às lealdades de classe em nome do individualismo, a degradação da democracia através campanhas maciças dos media que enfocam personalidades. 

A nova tiraria cultura tem raiz no omnipresente e repetitivo discurso do mercado, da cultura homogeneizada do consumo, de um sistema eleitoral degradado. A nova tiraria dos media mantem-se de pé lado a lado com o Estado hierárquico e as instituições económicas que vão desde os gabinetes dos bancos internacionais às aldeias nos Andes. 

O segredo do êxito da penetração cultural norte-americana no Terceiro Mundo é sua capacidade para modelar fantasias a fim de escapar à miséria gerado pelo próprio sistema de dominação económica e militar. Os ingredientes essenciais do novo imperialismo cultural são a fusão do comercialismo-sexualidade-conservadorismo, cada um deles apresentado como expressões idealizadas de necessidades privadas, de auto-realização individual. 

Para algumas pessoas do Terceiro Mundo imersas em tarefas quotidianas sem perspectivas, lutas pela sobrevivência diária, no meio da sujeira e da degradação, as fantasias dos media norte-americanos, tal como o evangelista, retractam "alguma coisa melhor", uma esperança numa melhor vida futura — ou pelo menos o prazer indirecto de observar outros a desfrutá-la. 



Impacto do Imperialismo  Cultural  


Se quisermos entender a ausência de transformação revolucionária, apesar da maturação de condições revolucionárias, devemos reconsiderar o profundo impacto psicológico do Estado de violência, terror político e a profunda penetração dos valores cultural/ideológicos propagados pelos países imperiais e internalizados pelos povos oprimidos. 

O Estado de violência dos anos 70 e princípios de 80 criaram danos psíquicos a longo prazo e em larga escala — medo de iniciativas radicais, desconfiança de colectividades, um sentimento de impotência perante autoridades estabelecidas — mesmo quando as mesmas autoridades são odiadas. O terror virou o povo "para dentro de si próprio", em direcção a domínios privados. 

Posteriormente, políticas neoliberais, uma forma de "terrorismo económico", resultaram no encerramento de fábricas, na abolição da protecção legal do trabalho, no crescimento do trabalho temporário, na multiplicação de empresas individuais mal pagas. Estas políticas mais uma vez fragmentaram a classe trabalhadora e as comunidades urbanas. 

Neste contexto de fragmentação, desconfiança e privatização, a mensagem cultural do imperialismo encontrou campos férteis para explorar as sensibilidades de pessoas vulneráveis, encorajando e aprofundando a alienação pessoal, objectivos auto-centrados e a competição individual sobre recursos cada vez mais escassos. 

O imperialismo cultural e os valores que ele promove tem desempenhado um papel importante para impedir indivíduos explorados de responderem colectivamente às suas condições em deterioração. Os símbolos, imagens e ideologias que se difundiram no Terceiro Mundo são obstáculos maiores para a conversão da exploração de classe e crescente miserabilismo em consciência de classe, base para a acção colectiva. A grande vitória do imperialismo é não apenas os lucros materiais, mas sua conquista do espaço íntimo da consciência dos oprimidos, directamente através dos mass media e indirectamente através da captura (ou rendição) dos seus intelectuais e políticos. Se bem que um renascimento da política revolucionária de massa seja possível, ela deve começar com a guerra não só às condições de exploração como também à cultura que sujeita suas vítimas. 


Limites do Imperialismo Cultural 


Contrariando as pressões do colonialismo cultural está o princípio da realidade: a experiência pessoal de miséria e exploração imposta pelos bancos multinacionais ocidentais, a repressão policial/militar reforçada pelo fornecimento de armas americanas. As realidades diárias, às quais os media escapistas jamais poderão mudar. Dentro da consciência dos povos do Terceiro Mundo há uma luta constante entre o demónio da escapatória individual (cultivada pelos massa media) e o conhecimento intuitivo de que a acção e responsabilidade colectivas são a única resposta prática. Em tempos de mobilizações sociais crescentes, a virtude da solidariedade ganha prioridade; em tempos de derrota e declínio, aos demónios da rapacidade individual é dado livre trânsito. 

Há limites absolutos na capacidade do imperialismo cultural para distrair e mistificar pessoas para além do qual inicia-se a rejeição popular. A "mesa da fartura" na TV contrasta com a experiência da cozinha vazia, as escapadelas amorosas de personalidades dos media chocam-se contra uma casa cheia de crianças a engatinharem, chorosas e famélicas. Nas confrontações de rua, a Coca Cola torna-se um coquetel Molotov. A promessa de riqueza torna-se uma afronta àqueles a quem é perpetuamente negada. O empobrecimento prolongado e a decadência generalizada corroem o encanto e o apelo das fantasias dos mass media.  As falsas promessas do imperialismo cultural tornam-se objecto de anedotas amargas, relegadas para outro tempo e outro lugar. 

Os apelos do imperialismo cultural são limitados pelos laços duradouros das colectividades — locais e regionais — as quais têm os seus próprios valores e práticas. Onde os laços de classe, de raça, de género e de etnia persistem e as práticas de acção colectiva são fortes, a influência dos mass media é limitada ou rejeitada. 

Na media em que as culturas e tradições preexistentes se mantenham, elas formam um "círculo fechado" que integra práticas sociais e culturais voltadas para dentro de si mesmas, não para fora. Em muitas comunidades há uma rejeição clara do discurso "modernista" de desenvolvimento individualista associado com a supremacia do mercado. 

As raízes históricas para a solidariedade sustentada e para os movimentos anti-imperiais são encontradas em comunidades étnicas e ocupacionais coesas; cidades mineiras, aldeias de pescadores e florestais, concentrações industriais em centros urbanos. Onde trabalho, comunidade e classe convergem com tradições culturais e práticas colectivas, o imperialismo cultura recua. 

A efectividade do imperialismo cultural não depende simplesmente das suas qualificações técnicas de manipulação, mas sim da capacidade do Estado de brutalizar a atomizar a massa do povo, privá-la das suas esperanças e da fé colectiva em sociedades igualitárias. 

A libertação cultural não significa simplesmente "dar poder" a indivíduos ou classes, mas depende sim do desenvolvimento de uma força sócio-política capaz de confrontar o estado de terror que antecede a conquista cultural. A autonomia cultural depende da força social e a força social é percebida pelas classes dominantes como uma ameaça ao poder económico e do Estado. 

Assim como a luta cultural está enraizada em valores de autonomia, comunidade e solidariedade que são necessários para criar a condição de consciência por transformações sociais, é necessária a força política e militar para apoiar as bases culturais das identidades de classe e de nação. 

O mais importante: a esquerda deve recriar uma fé e uma visão de uma nova sociedade construída em torno de valores tanto espirituais como materiais: valores de beleza e não apenas de trabalho. A solidariedade ligada à generosidade e à dignidade. Onde os modos de produção estejam subordinados a esforços para fortalecer e aprofundar antigos vínculos pessoais e de amizade. 

O socialismo deve reconhecer as aspirações de estar sozinho, de estar na intimidade, assim como de ser social e colectivo. Acima de tudo, a nova visão deve inspirar o povo porque isto vibra com o seu desejo não apenas de ser livre da dominação como de ser livre para criar uma vida pessoal significativa informada por relações afectivas não-instrumentais que tanto transcendam o trabalho quotidiano como inspirem as pessoas a continuarem a lutar. O imperialismo cultural tem êxito quanto à novidade, às relações transitórias e à manipulação pessoal, mas nunca sobre uma visão de laços autênticos, íntimos, baseados sobre a honestidade pessoal, a igualdade de género e a solidariedade social. 

As imagens pessoais mascaram os assassínios em massa do Estado, assim como a retórica tecnocrática racionaliza as armas de destruição maciça ("bombas inteligentes"). O imperialismo cultural na era da 'democracia' deve falsificar a realidade no país imperial a fim de justificar a agressão — através da conversão das vítimas em agressores e dos agressores em vítimas.