28.3.16

O Modernismo como Precursor da Identidade Cultural Brasileira


POR RENAN BINI

Macunaíma é uma obra do escritor brasileiro Mario de Andrade (1893 – 1945), um dos precursores do Modernista no Brasil, sendo também autor de Amar, Verbo Intransitivo e A Escrava que não é Isaura, dentre outros. Publicado originalmente em 1928, o livro faz parte da primeira fase do modernismo.

A obra se destaca pela originalidade da forma como descreve o povo indígena, divergindo de José de Alencar, por exemplo, em Iracema: “A virgem dos lábios de mel” (1865, Romantismo). Apesar de as obras fazerem parte de outro contexto histórico e período literário, Macunaíma representa a evolução na forma como os índios eram apresentados: antes de forma utópica e romântica com sua cultura preservada, agora de maneira debochada, e costumes afetados pela ideologia dominante na época.


Nesse aspecto, considerando o contexto em que a obra se insere, há relevância intrínseca ao definir o olhar ao objeto de análise, o presente artigo buscará por meio da Análise do Discurso de vertente francesa e da teoria dos estudos culturais, compreender a situação empírica, os interdiscursos, as condições de produção e as circunstâncias de enunciação da obra, do movimento que ela representa e suas influências na construção da identidade cultural do povo brasileiro.

De acordo com Orlandi (2013), a partir do estudo da AD, compreende-se, o homem em sua capacidade de significar e significar-se. Por meio da teoria, concebe-se a linguagem como mediação (discurso) necessária entre o homem e a realidade natural e social. Nesse aspecto, os discursos dominantes modelam diretamente o futuro do grupo social ao qual inserem-se (continuidade ou transformação do homem e da realidade em que ele vive).

Assim, considerando a linguagem não apenas como instrumento de mediação entre os seres humanos, mas principalmente como fator determinante à construção subjetiva/cultural e ao futuro de determinado povo, o presente trabalho caracteriza-se como um estudo da maneira em que as ideologias e as convenções sociais, por meio dos interdiscursos, influenciaram na construção da identidade cultural brasileira e como isso evidenciou-se na literatura, especificamente na obra e no protagonismo de Macunaíma.

Nesse aspecto, por meio da análise da convenção social e ideológica real, o estudo analisará parte dos discursos apresentados na rapsódia (considerando a ficção como desdobramento da visão de Mário de Andrade sobre o contexto sócio-histórico-cultural do início do século XX), aplicando-os à AD francesa, considerando as inter discursividades e o estado de passividade social dos personagens indígenas como desdobramentos do discurso persuasivo da cultura dominante na época.

Considerando a análise de gêneros literários, segundo Mikhail Bakhtin (1998), o gênero romance não deve ser visto somente como um encontro de linguagens, de tempos históricos distantes e de civilizações, pois, desta maneira, não teriam oportunidade de se relacionarem. A partir deste ponto de vista, a literatura representa uma tentativa de representar a vida, embora a liberdade do romancista, na representação da vida, seja diferente daquela que o historiador exerce, portanto, literatura e história se complementam. 

A análise de Discurso de vertente francesa considera a linguagem como mediação necessária entre sujeito e realidade natural e social. O discurso possibilita a permanência e a continuidade ou o deslocamento e a transformação do sujeito e do contexto ao qual está inserido. Transformação essa, que evidencia-se de forma gritante a partir do contato entre os protagonistas indígenas e a cidade de São Paulo.

De acordo com Orlandi (2013), a AD considera o sujeito e sua história, os processos e as condições de produção da linguagem, por meio da análise da relação estabelecida pela língua com os falantes e as situações em que o dizer é produzido. Assim, o analista de discurso relaciona a linguagem à exterioridade (contexto, situação empírica, interdiscurso, condições de produção, circunstâncias de enunciação).

Para a autora, a Análise do Discurso objetiva a compreensão de como os símbolos constituem-se e produzem sentidos, analisando os gestos de interpretação que ela considera como atos no domínio simbólico. A AD trabalha os limites e os mecanismos da interpretação, como parte de seus processos de significação. Considerando sujeito e exterioridades, para a AD, o sujeito linguístico-histórico é constituído pelo esquecimento e pela ideologia. Assim, a análise consistirá não em identificar “verdades ocultas” na rapsódia, mas sim, por meio da análise dos pressupostos e da associação às exterioridades, identificar as influências histórico-contextuais e ideológicas na formação do discurso; no processo ao qual o enunciador absorve-o em sua subjetividade esquecendo a real autoria dos ideais apresentados, bem como nos gestos de interpretação que o constituem.


MODERNISMO E MODERNIDADE


De acordo com Thompson (1998), com o desenvolvimento de uma variedade de instituições de comunicação a partir do século XV, os processos de produção, armazenamento e circulação têm passado por significativas transformações. Em virtude deste desenvolvimento, não apenas produtos, como também ideologias, foram produzidas e reproduzidas em escala sempre em expansão. Ideias tornaram-se mercadorias que podem ser compradas e vendidas, e tornaram-se acessíveis aos indivíduos dispersos no tempo e no espaço. De forma profunda e irreversível, o desenvolvimento tecnológico transformou a natureza da produção e do intercâmbio simbólico no mundo moderno.

Friedrich Nietzsche (2001), no século XIX, anunciou a morte de Deus em A gaia ciência (1882). Ao afirmar que os homens mataram a Deus, o filósofo alemão atentou que um novo homem surgia, superando a si próprio, ou seja, um super-homem. Ao criticar a visão platônica da existência de dois mundos e valorizando o pensamento sofista da busca de explicações científicas e não mitológicas à complexidade humana (pressupondo que o cristianismo ocidental nada mais é do que a interpretação dos ideais propostos por Platão e Sócrates), Nietzsche evidencia a ruptura que a modernidade introduz na história da cultura com o desaparecimento dos valores absolutos, das essências e do fundamento divino.

Assim, analisando a modernidade a partir da visão da AD sobre a propagação das ideologias e dos interdiscursos e a capacidade de como os discursos advindos da cultura dominante persuadem o meio, entende-se que as culturas detentoras dos insumos tecnológicos utilizaram-se destes mecanismos para sobrepor seus aspectos culturais e visão de mundo.

Segundo Guberman (2015), nas duas primeiras décadas do século XX, surge no Brasil o modernismo. Na época, o país atravessava um período de instabilidade econômica, social e política. A proclamação da República, em 1889 não trouxe o desenvolvimento esperado. Por volta de 1904, começa a industrialização no Brasil, entretanto, somente após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), observa-se um considerável crescimento industrial e uma efetiva urbanização no país. As diversas crises resultam na Revolução de 30, que permite a ruptura com a elite formada, em sua maioria, por latifundiários.

Além da inovação na forma de caracterizar o povo indígena, Mário de Andrade também inova ao desenvolver seu texto com linguagem totalmente coloquial (oposto dos períodos literários anteriores) e apesar da desvalorização deste, provavelmente a intenção do autor e do movimento (modernismo) é apontar a necessidade da criação de uma identidade cultural brasileira, já que na época ainda valorizava-se muito a Europa (cultura, estilo literário, música, educação, etc.), mesmo o Brasil sendo constituído também por índios e descendentes de africanos, por isso Macunaíma está repleto de personagens folclóricos, palavras africanas e indígenas, e o hibridismo cultural.

Para Hall (2006), o próprio conceito com o qual estamos lidando, “identidade”, demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova. Como ocorre com muitos outros fenômenos sociais, é impossível oferecer afirmações conclusivas ou fazer julgamentos seguros sobre as alegações e proposições teóricas que estão sendo apresentadas.

A partir do hibridismo, Mário de Andrade mesclou real e fantasioso (ora apenas na imaginação de Macunaíma, ora como se fosse realidade). Assim, o escritor compôs sua rapsódia adaptando o folclore, lendas, costumes, a culinária, plantas e bichos de todas as regiões do Brasil, misturando todas as manifestações culturais e religiosas, objetivando criar um aspecto de unidade nacional, que diverge ainda hoje de nossa realidade. (...)